Sambaqui da Capelinha

Mariane Cardoso, Ana Luiza Nobre e David Sperling

SP, Brasil

24°50'34" oeste e 48°14'17" sul.

Preciosos sítios arqueológicos, que remontam aos primeiros assentamentos humanos no atual território brasileiro, os sambaquis foram tratados como minas de cal no período colonial.

Publicado em
22/09/2022

Atualizado em
02/12/2022

Sambaquis são montes artificiais construídos pelos primeiros habitantes do litoral brasileiro, há 7 ou 8000 anos atrás. Chegam a ter mais de trinta metros de altura e 400 metros de extensão. Resultam da sobreposição de restos orgânicos, principalmente camadas de conchas de moluscos que se acumularam por milhares de anos, resultando na sua fossilização. Entre as conchas, por vezes são encontrados artefatos líticos e ósseos, restos de fogueiras e ossadas humanas.

No século XIX, era comum a ideia de que tais montes eram meros depósitos ocasionais de sobras alimentares. Pesquisas arqueológicas mostraram, no entanto, que os sambaquis resultam de atividades sociais, constituem padrões de assentamento muito anteriores à colonização portuguesa e foram construídos, com formas e funções variadas, como marcos territoriais, paisagísticos, cemitérios, plataformas de trabalho ou moradia.

Um dos mais antigos é o Sambaqui da Capelinha, onde foi encontrado um esqueleto de aproximadamente 9000 anos de idade. E o monte não está no litoral: é um sambaqui fluvial no interior de São Paulo, no Vale do Ribeira. A peça não se encaixa no quebra-cabeça arqueológico que vinha sendo montado e levanta a dúvida se esse sambaqui é herdeiro ou precursor de tradições de populações litorâneas. Uma lacuna que talvez seja difícil de preencher, visto que os sambaquis mais antigos provavelmente estão submersos por conta do avanço da linha do mar.

Os mais afastados da costa, por sua vez, não escaparam de outras formas de arrasamento. Muitos foram tratados como jazidas minerais por séculos, e se tornaram fonte de matéria-prima para o fabrico de cal – sobretudo em regiões pobres de rochas calcáreas. Chamados de “Minas de Sernamby”, deles se extraiu impunemente, por meio de trabalho escravo, a cal usada em diversos edifícios coloniais como o Colégio dos Jesuítas de Salvador e o Forte de Óbidos, às margens do rio Amazonas.

Nos Tratados da terra e gente do Brasil (1583-1601), já o padre jesuíta Fernão Cardim relatava que “os índios naturais antigamente vinham ao mar às ostras, e tomavam tantas que deixavam serras de cascas […] e os portugueses descobriram algumas, e cada dia se vão achando outras de novo, e destas cascas fazem cal, e de um só monte se fez parte do Colégio da Bahia, os paços do Governador, e outros muitos edifícios.” (Cardim, 2021, p. 76)

Prática semelhante é descrita no séc XVIII pelo beneditino Frei Gaspar da Madre de Deus, em suas Memórias para a história da Capitania de São Vicente:  “Destas conchas dos mariscos que comeram os índios, se tem feito toda a cal dos edifícios desta Capitania desde o tempo da fundação até agora, e tarde se acabaram as ostreiras de Santos, S. Vicente, Conceição, Iguape, Cananéia, etc” (Madre de Deus, 2010, p.34). 

O Código de Minas, que regulamentou a exploração de jazidas minerais no Brasil na década de 1930, foi a primeira lei em âmbito nacional que protegeu os sambaquis, ainda que indiretamente, da ação predatória. Só em 1961, no entanto, estes chãos antrópicos foram considerados vestígios da cultura paleoameríndia, e sua exploração para fins econômicos e industriais condicionada ao aval do SPHAN/Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Hoje, muitos desses patrimônios ancestrais engolidos pelas cidades restam como suaves ondulações topográficas que escrevem, em escala territorial, um capítulo pouco conhecido da história da ocupação e da mineração no Brasil.

Fornos de cal no RJ, 1835, de Jean-Baptiste Debret. (1)

Fornos de cal no RJ, 1835, de Jean-Baptiste Debret. (1)

Crânio de 9.000 anos de idade, encontrado no Sambaqui da Capelinha. Eduardo Cezar e Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos/IB-USP. (2)

Crânio de 9.000 anos de idade, encontrado no Sambaqui da Capelinha. Eduardo Cezar e Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos/IB-USP. (2)

Hábitos e características de Luzio, nome dado ao esqueleto encontrado no Sambaqui da Capelinha. Autor: Daniel das Neves. (3)

Hábitos e características de Luzio, nome dado ao esqueleto encontrado no Sambaqui da Capelinha. Autor: Daniel das Neves. (3)

Reconstituição facial em 3d de um crânio fossilizado encontrado no sambaqui da reserva biológica e arqueológica de Guaratiba. Museu Nacional da Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ). (4)

Reconstituição facial em 3d de um crânio fossilizado encontrado no sambaqui da reserva biológica e arqueológica de Guaratiba. Museu Nacional da Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ). (4)

Esqueleto de 9.000 anos encontrado no Sambaqui da Capelinha. Alexandro Gonçalves/O Estado de S. Paulo. (5)

Esqueleto de 9.000 anos encontrado no Sambaqui da Capelinha. Alexandro Gonçalves/O Estado de S. Paulo. (5)

Sambaqui fluvial no Vale do Ribeira. Ligia Bartolomucci. (6)

Sambaqui fluvial no Vale do Ribeira. Ligia Bartolomucci. (6)