Porta do Não-Retorno

Joana Martins, Ana Luiza Nobre e David Sperling

Ouidah, Benin

6°19'27" leste e 2°5'22" norte.

Monumento em memória dos milhares de escravizados que deixaram o porto de Ouidah, no Benin, para nunca mais retornar, tendo o Brasil como principal destino.

Publicado em
28/08/2022

Atualizado em
02/12/2022

Era na costa oeste do continente africano, conhecida como Costa dos Escravos, que se localizavam os principais portos de embarque de negros escravizados em direção ao outro lado do Atlântico. Só em Ouidah, no litoral do antigo Daomé (atual Benin), estima-se que embarcaram cerca de 1 milhão de africanos escravizados, sem retornar. Uma triste história que deu origem à Porta do Não-Retorno, inaugurada em 1995 como parte do projeto internacional “A Rota do Escravo”, organizado pela UNESCO.  

A rota começa na casa de Francisco Félix de Souza, posteriormente conhecido como Chacha, um ex-escravizado nascido na Bahia que se tornou o maior comerciante de cativos no Benin, na primeira metade do século XIX. Da praça atrás de sua casa, no centro da cidade, segue por uma estrada de terra até o mar, onde acredita-se que estaria o porto de embarque para a América.

O monumento é composto por um grande arco com colunas ilustradas por artistas beninenses com cenas que remetem à escravidão. Uma passagem de mão única, representando a última parcela de terra africana pisada por milhares de vidas sequestradas, a exemplo de outros portais semelhantes em cidades portuárias do continente africano, como a Porta do Nunca Mais na Casa dos Escravos, no Senegal. 

Ali, a relação com o Brasil é imediata. A proibição do comércio de escravizados pelos Estados Unidos e colônias britânicas na primeira década do século XIX fez do país – um dos últimos países a proibir o tráfico negreiro, quase meio século depois – o principal destino dos beninenses escravizados. E foi assim que Chacha se tornou um dos homens mais importantes do Benin, onde o comércio de pessoas escravizadas foi a principal atividade econômica por décadas. Contraditoriamente, Chacha recebia bem os ex-escravos que retornavam do Brasil, os mesmos que antes haviam sido vendidos por ele. Especula-se também que ele tenha participado da Conjuração Baiana e que tenha acolhido rebeldes deportados após a Revolta dos Malês.

A fortuna que Chacha construiu no Benin acabou atraindo outros brasileiros libertos para o país, o que contribuiu para a formação de uma comunidade brasileira em Oiudah. Esses brasileiros, aos quais se somam os beninenses levados como escravos ao Brasil e retornados à sua terra natal, são chamados de “agudás”. Graças a eles, as referências ao Brasil pontuam as ruas de cidades litorâneas do Benin e de outros núcleos urbanos da África Ocidental, mostrando que os horrores da escravidão também produziram ricos intercâmbios culturais. Os agudás cultivam costumes brasileiros. Celebram a festa do Nosso Senhor do Bonfim, falam português e comem feijoadas e acarajés. Suas edificações também carregam traços da arquitetura, das técnicas construtivas e dos modos de viver brasileiros, em “bairros brasileiros” que tem a Bahia como referência suprema. A criação dessa identidade foi responsável, segundo o antropólogo brasileiro Milton Guran, por levar costumes ocidentais ou “maneiras de branco” ao país africano. 

Já no Brasil, a herança africana é dominada pela matriz iorubá, oriunda da região onde hoje está o Benin. O “vodu” cultuado no Benin, por exemplo, tem fortes relações com o candomblé. E por conta das relações políticas entre os dois países, estreitas desde a escravidão, Daomé foi o primeiro governo a reconhecer a independência do Brasil. Cerca de uma década depois que Adandozan, rei de Daomé, presenteou D.João VI com um trono real, com a intenção de obter privilégios no comércio de escravizados. Um trono de madeira, provavelmente do séc XVIII, que acabou consumido pelo fogo no incêndio do Museu Nacional, em 2018.

Fonte: Getty Images. (1)

Fonte: Getty Images. (1)

Francisco Félix de Souza, também conhecido como Chachá. Autor desconhecido. Fonte: Wikipedia. (2)

Francisco Félix de Souza, também conhecido como Chachá. Autor desconhecido. Fonte: Wikipedia. (2)

Recepção dos brasileiros na missa do Bonfim na Catedral do Porto Novo, em 1995. Foto: Milton Guran. (3)

Recepção dos brasileiros na missa do Bonfim na Catedral do Porto Novo, em 1995. Foto: Milton Guran. (3)

Honoré Feliciano Julião de Souza, o Chachá VIII. Foto: Milton Guran. (4)

Honoré Feliciano Julião de Souza, o Chachá VIII. Foto: Milton Guran. (4)

Trono real. Presente de Adandozan, rei do Daomé, a Dom João em 1810. Fonte: Acervo Museu Nacional UFRJ. (5)

Trono real. Presente de Adandozan, rei do Daomé, a Dom João em 1810. Fonte: Acervo Museu Nacional UFRJ. (5)

Lista de famílias ‘’agudás’’, descendentes de ex-escravos que retornaram para sua terra natal em Ajudá, Benim. (6)

Lista de famílias ‘’agudás’’, descendentes de ex-escravos que retornaram para sua terra natal em Ajudá, Benim. (6)

Detalhe da Porta do Não-Retorno. Foto: Jane Hahn/For The Washington Post. (7)

Detalhe da Porta do Não-Retorno. Foto: Jane Hahn/For The Washington Post. (7)

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