Pata Seca

Ana Carolina Bezerra e David Sperling

SP, Brasil

21°46'29" oeste e 47°49'30" sul.

“Nossa..., quando foi liberto, minha tia Tonica falava, falava meu avô. Ela falava que da Fazenda Grande até na Vila, eles pegavam panela, colher, lata, e parecia uma procissão batendo, cantando e cantando e festejando - as coisas dos africanos - a libertação e a princesa Isabel. Correram lá e foram abrindo a senzala e ficaram todos ‘loucos’ e feliz. Já pensou que alegria? Já pensou.... Já pensou…” (Relato do dia da libertação contado pelo neto de Roque, o Pata Seca)

Publicado em
22/11/2023

Atualizado em
08/01/2024

São Carlos nasceu em 1857, do café e da exploração do solo fértil. A intensa expansão cafeeira tornou a cidade um polo de exportação, um chão que deu origem aos maiores e mais lucrativos latifúndios do estado. Elite agrária, café, terra roxa, um grande contingente de mão de obra escravizada e, posteriormente, imigrantes alemães e italianos, deram origem à São Carlos que hoje conhecemos.
Fundada em uma época de grande agitação para o fim da escravidão que se consolidaria legalmente em 1888, a cidade ainda via o o comércio de mão de obra escravizada como algo muito atrativo e lucrativo. Apenas na maior fazenda produtora da região, a Santa Eudóxia, havia 540 escravizados. Nessa fazenda, localizada no distrito de mesmo nome, o Visconde Francisco da Cunha Bueno transformou um de seus escravos em um reprodutor de escravos.
Essa é a história de Pata Seca, escravizado, nascido em Sorocaba, vendido ainda jovem em 1849, um ano antes da proibição do tráfico de africanos pela Lei Eusébio de Queiroz. Suas características físicas traçaram seu destino para fora das lavouras: 2,18 m de altura, forte e possuidor de canelas finas. No imaginário da época, acreditava-se que seriam aspectos que contribuíam para que fossem gerados filhos homens e, portanto, adequados ao trabalho forçado. Pata Seca foi então transformado em uma máquina de produção de mão-de-obra para a lavoura do café. 
Seu nome remetia às suas características físicas: mãos longas e finas. Tratava-se não só de coisificar, mas também de animalizar a figura do negro. Não vivia na Senzala, mas não estava distante dos processos brutais inerentes àquele espaço; ainda sim era violado e obrigado a violar em nome do intenso lucro que traria. Vivia na Casa Grande, tratado como mercadoria valiosíssima, mas a ele nada pertencia, nem ele a si mesmo. Seus anos de serviços geraram mais de 200 filhos que foram escravizados, vendidos, explorados, violentados, como parte do processo da produção e reprodução do capital cafeeiro. Comprado para manter o produto e substituir a função do navio negreiro, função que cumpriu até pelo menos a promulgação do Ventre Livre, em 1871. Cerca de 20 anos… 
Com a abolição, o recém alforriado Pata Seca é registrado como Roque José Florêncio, casa-se e ganha vinte alqueires de terra do Visconde após sua libertação pelo serviço “bem prestado” e “obediência”. Totalmente desamparado não tinha nem como cercar o pedaço de terra, que foi apropriado com o tempo por demarcações irregulares feitas por fazendeiros com influência política e econômica, sobrando a ele apenas um alqueire e meio. Mais um episódio do extenso processo de opressões e apagamentos da lógica escravocrata. 
Ainda sim, o sítio Pata Seca segue sendo uma resistência rural quilombola de reconquista e reconstrução territorial e identitária através da família de Roque, que procura preservar a memória de seus 131 anos de vida. No contexto das violentas narrativas escravocratas, São Carlos produziu a marca de ter sido a segunda maior cidade escravista do interior paulista.   

Retrato de Roque nas mãos de Madalena, uma de suas netas. Foto: Fabio Rodrigues/G1 (1)

Retrato de Roque nas mãos de Madalena, uma de suas netas. Foto: Fabio Rodrigues/G1 (1)

Senzala da Fazenda Santa Eudóxia. Foto: Acervo da Fundação Pró-Memória de São Carlos (2)

Senzala da Fazenda Santa Eudóxia. Foto: Acervo da Fundação Pró-Memória de São Carlos (2)

Escravizados na lavoura de café. Foto: Acervo da Fundação Pró-Memória de São Carlos (3)

Escravizados na lavoura de café. Foto: Acervo da Fundação Pró-Memória de São Carlos (3)

Rua de Santa Eudóxia, nomeada a pedido de um dos netos de Pata Seca. Foto: Fabio Rodrigues/G1 (4)

Rua de Santa Eudóxia, nomeada a pedido de um dos netos de Pata Seca. Foto: Fabio Rodrigues/G1 (4)

Família que Roque José Florêncio construiu após escravidão. Foto: G1 Globo (5)

Família que Roque José Florêncio construiu após escravidão. Foto: G1 Globo (5)