Moçâmedes
Diego Inglez de Souza
Publicado em
06/10/2022
Atualizado em
16/03/2023
O clima de revolta e o agravamento dos sentimentos anti-lusitanos associados a eclosão da Revolução Praieira fez um grupo de luso-brasileiros pedir ajuda à coroa, que decide transferi-los para o sudoeste africano, transformando-os em um vetor de domínio e colonização deste território praticamente inacessível a partir da terra por conta da aridez do deserto do Namibe e da Serra da Leba, praticamente intransponível. Ali instalados, estes primeiros colonos trataram de reconstituir uma representação distante dos lugares de onde vinham, síntese das estruturas sociais herdadas de Portugal com a paisagem construída em Pernambuco, desta vez num terceiro continente, fazendo a cidade atravessar o Atlântico, tal como fizeram os habitantes da Nova Mazagão no século anterior, transferidos do Marrocos para a foz do Rio Amazonas.
A abundância de recursos haliêuticos acabou por atrair pescadores algarvios vindos de Olhão nos primeiros anos da década de 1850, enfrentando uma longa viagem em seus caíques de pesca para estabelecer-se na região. A expansão das secas de peixe, destinadas a abastecer outros empreendimentos coloniais europeus na África, assim como o impulso da pesca da baleia fez expandir a mancha urbanizada de Moçâmedes e os portos de pesca para Lucira, Porto Amélia e Porto Alexandre (hoje Tômbua) e para a Baía dos Tigres. Com a implantação dos caminhos de ferro, a exploração dos recursos naturais intensificou-se. A mineração, assim como as indústrias de conservas e farinhas de peixe transformaram radicalmente a paisagem da Baía do Namibe. Capital de uma província que concentra outros testemunhos da violência e sofisticação do projeto colonial como o Posto Experimental do Caraculo, Moçâmedes recebeu significativos investimentos em infraestruturas depois da Segunda Guerra mundial. Ali jovens arquitetos portugueses fascinados com a arquitetura brasileira, apreendida através do Brazil Builds, puderam exercer alguma liberdade criativa, muito longe de Lisboa. A cidade foi objeto de um Plano Geral de Urbanização elaborado na metrópole, pensado para converter este ponto estratégico da costa sul-africana num porto funcional para escoar os produtos da mineração.
Na região de Moçâmedes, tida como exemplo de colonização pelos últimos entusiastas do império português que ruiu na sequência da revolução dos cravos, funcionou até 1975 o campo de concentração de São Nicolau (hoje Bentiaba), local de torturas e extermínio de presos políticos, resultado da política colonial do Estado Novo. A região sofreu também com a guerra civil, tornando-se teatro estratégico das batalhas entre o MPLA e a UNITA. Se a indústria da pesca não sobreviveu à derrocada do colonialismo salazarista, a mineração continua em franca expansão, assim como a produção especulativa das periferias urbanas, atraindo investidores chineses e empreiteiras brasileiras.
Referências
VIDAL, Laurent. Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico. São Paulo: Martins Fontes, 2008. -Saraiva, Tiago. Porcos fascistas: Organismos Tecnocientíficos e a História do Fascismo, Porto: Dafne Editora, 2022.
Gabinete de Urbanização do Ultramar, Plano Geral de Urbanização de Moçâmedes, Junho 1954. Arquivo Histórico Ultramarino, PT/AHU/ID-OP/OP13628.05.
“Moçâmedes”, episódio da série Angola 70, produzido pela Rádio Televisão de Portugal e veiculado pela RTP 1 em 31 de Maio de 1970. Disponível em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/mocamedes/ .