Mineração Taboca
Mariane Cardoso, Ana Luiza Nobre e David Sperling
Publicado em
22/09/2022
Atualizado em
02/12/2022
Por que Kamña matou Kiña? Em 1985, quando os professores Egydio e Doroti Schwade começaram a utilizar um método de alfabetização baseado em Paulo Freire junto aos Waimiri-Atroari, na aldeia Yawará em Roraima, essa foi a pergunta que mais escutaram. Kiña é como os Waimiri-Atroari se autodenominam. Kamña é como denominam os homens brancos civilizados.
Utilizando desenhos do cotidiano dos indígenas no processo de ensino-aprendizagem, os professores se depararam com um verdadeiro cenário de guerra. Os Atroari desenharam aviões sobrevoando árvores. Homens atirando com espingardas. Helicópteros despejando bombas. Homens fardados. Aldeias destruídas. Era a primeira versão dada por esse povo de um genocídio que acontecia há pelo menos 10 anos e que já exterminara mais de dois mil indígenas. Na aldeia Yawará, viviam 31 sobreviventes.
O Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas buscou responder à pergunta dos Waimiri-Atroari num relatório de 2012. Chegou à conclusão de que os Kamña eram jagunços, contratados pela empresa paramilitar Sacopan, e soldados do próprio Exército Brasileiro.
O governo militar utilizou desde aparatos bélicos até armas biológicas para dizimar os povos indígenas que resistiram às invasões de seus territórios. Com a Operação Atroari, os militares espalharam panfletos sugerindo que havia guerrilheiros entre eles. O motivo? Justificar a abertura da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista), mesmo que por cima de aldeias destruídas.
Ainda durante a construção da rodovia, em 1969, o Grupo Paranapanema invadiu o território indígena, conquistando posteriormente os direitos minerários sobre essas terras e fundando a Mineração Taboca, que extrai da terra a cassiterita e a columbita. A postura entreguista do governo, inclusive da própria Fundação Nacional do Índio/Funai, se tornava nítida. A demarcação do território indígena dos Waimiri-Atroari, a partir de 1971, foi alvo de uma série de decretos que, além de desconsiderar boa parcela do histórico de despossessão desse povo, modificou a demarcação a favor de interesses privados. Em área convenientemente deixada de fora da demarcação, ao leste, construiu-se em 1982 a Vila de Pitinga, uma espécie de “company town” no município de Presidente Figueiredo (AM) para atender à Mineração Taboca.
A mesma postura de favorecimentos privados se deu no caso da instalação das usinas hidrelétricas de Pitinga (autorizada em 1986) e Balbina (autorizada em 1981). Ainda em 1986, dois líderes Waimori-Atroari escreveram uma carta endereçada ao então Presidente da República, ao Ministro das Minas e Energias, ao Ministro do Interior e ao Presidente da Funai, na esperança de serem ouvidos. Disseram:
“[…] com a construção da hidrelétrica, a terra dos PIUTITI e TIQUIRIÁ vai ser inundada. Isso não pode acontecer. Pra que a Taboca foi pra lá? Pra estragar nossa terra? Até hoje, desde quando o Presidente Figueiredo deixou Taboca ir pra lá, está roubando nossa cassiterita só pra ela”. Está escrito. Letrinha por letrinha, palavra por palavra em língua portuguesa bem alfabetizada. Ponto, vírgula e pula parágrafo. De nada adiantou. Ao menos 9 aldeias desapareceram na região de Pitinga. Essa foi a única resposta.
Links Relacionados Desenhos Kiña
Referências
COMITÊ Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas. 1º Relatório do Comitê Estadual da Verdade: o genocídio do povo Waimiri-Atroari. Manaus, 2012. Disponível em: . Acessado em 01 de Mai. 2022.
NAVA, Daniel Borges. Governança socioambiental local dos grande projetos de mineração na Amazônio Ocidental brasileira. Tese (Doutorado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia) – Universidade Federal do Amazonas. Manaus, 256f., 2019.
SCHWADE, Tiago Maiká Müller. Reordenamento territorial e conflitos agrários em Presidente Figueiredo – Amazonas. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais) –– Universidade Federal do Amazonas. Manaus, 117f., 2012.
TABOCA. História. S.l, s.d. Disponível em: . Acessado em 01 de Mai. 2022.
FREITAS, Leandro Barbosa de. SANTOS JR., Paulo Barreiro dos. A luta dos Waimiri-Atroari no contexto de implantação autoritária de grandes projetos capitalistas em Presidente Figueiredo (AM) durante o regime militar. In: III Seminário Internacional História do Tempo Presente. Anais... Florianópolis, 2017.
SILVA FILHO, Eduardo Gomes da. A escrita Waimiri-Atroari, uma etnografia da etnologia indígena: memórias e a construção social da resistência. In: XXVIII Simpósio Nacional de História. Anais... Florianópolis, 2015.
Imagem 1 e 2: https://www.behance.net/gallery/107231739/Mineracao-Taboca?tracking_source=search_projects_recommended%7Cminera%C3%A7%C3%A3o
Imagem 3: https://www.flickr.com/photos/tribunaldejusticadoamazonas/25636911667/in/album-72157693908927525/
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Imagem 5: https://www.flickr.com/photos/tribunaldejusticadoamazonas/23918649137/in/album-72157666999979539/
Imagem 6: http://querepublicaeessa.an.gov.br/images/T.I/CNV0VDH00092000401201572.pdf