Rua da Praia

Hoje distante alguns quarteirões da linha da água, efeito dos sucessivos aterros, a Rua da Praia é uma das artérias do movimentado centro de comércio popular do Recife que faz circular grãos, ervas, frutas, legumes, flores de plástico, enxovais, artigos para pesca e para o candomblé, ferragens, lonas, tintas, materiais de construção, rações de animais e perfumes, entre outros produtos. Situada nos limites dos Bairros de Santo Antônio e São José, a Rua da Praia é o prolongamento da Rua do Imperador Pedro II, que leva este nome por ter servido de ponto de desembarque do monarca em visita à capital de Pernambuco em 1859. 

A “Rua do Imperador” principia na Praça da República e acaba entre a Igreja do Divino Espírito Santo, edificada para abrigar o colégio jesuíta entre 1686 e 1690 sobre as ruínas do templo calvinista construído durante o período holandês e o antigo Grande Hotel, projeto de inspiração art déco do arquiteto Georges Meunier, no qual hospedaram-se políticos, celebridades e artistas. Perto dali, Sacadura Cabral e Gago Coutinho amararam depois da travessia do Atlântico Sul em 1922, durante as comemorações do Centenário da Independência do Brasil, fato evocado por um monumento escultórico situado na Praça Dezessete, alinhado com o “Monumento da Liberdade”, que representa uma índia de cocar e saia de penas. Na década de 1930, a Praça Dezessete foi redesenhada por Roberto Burle Marx. A Rua da Praia estende esta via funcional e simbólica, que foi parte da linha de costa até a realização de uma sequência de aterros iniciados com a ocupação neerlandesa. Começa no Edifício Inconfidência, projetado por Carlos Frederico Ferreira em 1942 para o IAPI, uma das realizações “pioneiras” da habitação social no Brasil e do uso da solução de apartamentos duplex, culminando no Mercado de São José, reminiscência dos mercados parisienses nos trópicos projetado por Louis Léger Vauthier a partir de 1871.

No começo do século XIX, boa parte do comércio ali concentrado era dominado por portugueses, confrontados com o aumento do sentimento anti-lusitano, tornando a Rua da Praia um lugar de frequentes conflitos conhecidos como “mata-marinheiro”. É também ali, na sede do jornal Diário Novo que se reúnem os ideólogos do movimento insurrecional republicano que eclode em 1848 conhecido como Revolução Praieira, uma das mais ambiciosas e progressistas das várias revoltas que caracterizam o Segundo Reinado. Em 1 de janeiro de 1849, os revoltosos lançam o Manifesto ao Mundo, no qual defendem o voto livre e universal para todos os brasileiros, a liberdade de imprensa, a independência dos poderes constituídos, a extinção da lei do juro convencional e a exclusividade do comércio retalhista para os cidadãos nacionais. Retomavam-se assim tanto algumas das reivindicações da Revolução de 1817 e da Confederação do Equador quanto o caráter revolucionário da Província de Pernambuco. Por esta sucessão de episódios, arquiteturas e espaços, entremeadas com as intensas dinâmicas do comércio local, a Rua da Praia acaba por ser uma espécie de sinédoque das transformações ocorridas neste chão nos dois últimos séculos.