Primeira Cruz
Maria Manuel Oliveira
Braga, Portugal
41°33'1" leste e 8°25'39" sul.
Publicado em
30/09/2022
Atualizado em
30/09/2022
Celebrando a instalação da nova capital, às 23:30 do dia 20 de abril de 1960, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, foi colocada no altar a cruz diante da qual teria sido realizada a Primeira Missa no Brasil, chegada agora de Portugal com o cardeal Cerejeira, Legado Pontifício e representante máximo da Igreja Católica em pleno regime salazarista. Entre a missão civilizacional de que se dizia imbuída e a acção colonizadora que, de novo, trazia implícita, a cruz de cerca de quarenta centímetros de altura transportava consigo a história da viagem que abriu caminho a uma intensa, traumática e complexa circulação transatlântica que tem percorrido os últimos cinco séculos. Precisamente 460 anos antes, segundo a crónica de Pêro Vaz de Caminha, a partir da frota que navegava para Calecute comandada por Pedro Álvares Cabral, tinham sido topados alguns sinais de terra.
A longa carta que Pêro Vaz de Caminha, então, dirige ao rei D. Manuel, descreve os dias seguintes, dedicados ao reconhecimento dessa terra, de muito bons ares e com águas muitas, infindas, e muito cheia de grandes arvoredos. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-à nela tudo por bem das águas que tem. Descreve também as gentes que aí habitavam ( pardos, maneira d’avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto ) que, com pacífica curiosidade, terão observado a chegada desses outros homens que em tudo lhes eram estranhos. Pêro Vaz de Caminha revela uma paisagem edénica aos olhos europeus, que depois virá a alimentar fértil iconografia sobre um Paraíso ainda não contaminado pelo pecado. E é sobre esse estado de inocência que a pulsão colonizadora de imediato se expressa, sob o pretexto de salvar esta gente.
No dia 26 de abril de 1500, domingo de Pascoela, uma missa a qual disse o padre frei Anrique em voz entoada e oficiada, autoproclamou a soberania portuguesa e cristã sobre aquela a que chamaram Terra de Vera Cruz. A par com a bandeira de Cristo (…) a qual esteve sempre alta, levantada por Pedro Álvares Cabral, é possível imaginar a pequena cruz encimando um bastão cravado na areia do ilhéu, invocação celeste, gesto mágico e telúrico de pretenso domínio sobre o chão “achado”.
Desaparecida do olhar público até a década de 1930 , a “Cruz da Primeira Missa no Brasil” encontra-se hoje no Museu da Sé de Braga, cidade ao Norte de Portugal marcada pela presença maciça de brasileiros emigrados. Oferecida por um mecenas desconhecido, não se sabe, ao certo, o quanto há de verdade na aura que a rodeia. Mas afinal, como já disse um deão do cabido da catedral sobre a cruz, “há coisas que não se pode saber”.
Referências
“Brasil, capital Brasília: Governo Federal funciona aqui desde 0 hora”, Correio Braziliense, 21 de abril de 1960. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/02/22/interna_cidadesdf,829611/brasil-capital-brasilia-governo-federal-funciona-aqui-desde-0-hora.shtml. Acesso em 29 julho 2022.
Pêro Vaz de Caminha, Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. Portugal, Torre do Tombo. https://antt.dglab.gov.pt/wp-content/uploads/sites/17/2010/11/Carta-de-Pero-Vaz-de-Caminha-transcricao.pdf. Acesso em 29 julho 2022.
Prest, John, The Garden of Eden. The Botanic Garden and the re-Creation of Paradise. London, Yale University Press, 1988, p. 32-34.
Fonte das Imagens:
Imagem 1: Cruz da Primeira Missa
Autor: Manuel Correia
Fonte: Museu-Tesouro da Sé de Braga
Imagem 2: Primeira Missa no Brasil, Victor Meirelles, 1860.
Fonte: Wikimedia Commons/https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Meirelles-primeiramissa2.jpg
Imagem 3: Primeira página da Carta de Pêro Vaz de Caminha
Fonte: https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4185836
Imagem 4: Primeira Missa na inauguração de Brasília
Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/765694/especial-brasilia-55-anos
Imagem 5: Páginas 32 e 33 do livro "The Garden of Eden- The Botanic Garden and the re-Creation of Paradise" de John Prest